domingo, 2 de dezembro de 2012

A Deusa-Mãe

DEUSES E SANTOS

Misto de amor e ódio, ela é a mais antiga das divindades: a terra que dá a vida e também a morte.


A DEUSA-MÃE

A deusa-mãe é uma entidade em que os opostos se combinam: amor humano é uma das suas áreas de influência, mas também é o impulso que leva os homens a guerra. Doadora da vida, ela também é a divindade que a toma. Desde os tempos imemoriais o homem tem refletido com espanto, maravilhado, sobre a terra em que vive, que alimenta seus animais, sua família e sua tribo. E porque se sente dependente da terra, ela a personifica e a adora, ou pelo menos, a reverencia na mais poderosa de todas as imagens, a imagem da mãe.

Há não muito tempo atrás, uma sugestão foi feita: se alguém escrevesse um livro chamado Deus é Mulher, seria por certo, um Best seller. A sugestão pode ter sido parcialmente frívola, mas tendo em mente que, na história da humanidade só recentemente é que a divindade adquiriu atributos exclusivamente masculinos, a possibilidade de emprestar força sobrenatural em termos femininos está longe de ser irracional.

A mãe e o pai divinos

No ocidente, Deus é geralmente referido como “Nosso Pai que está no céu” mas a ingênua pergunta “Se Deus é o Pai, quem é nossa Mãe?” ainda merece ser respondida.

Historicamente a resposta é esta: “A Terra em que vivemos”.

Hoje em dia na sociedade ocidental, onde em grande parte as crenças das sociedades agrícolas já perderam suas raízes, diz-se que a terra deixou de ser santificada. A reverencia cedeu lugar a rude exploração. O mistério sumiu, para ser substituído pelos tapetes de asfalto e concreto e pela agricultura mecanizada.

A história da religião revela um panorama de deuses e deusas, seres espirituais, mais ou menos importantes, entre os quais a personificação da Terra ocupa uma posição proeminente. Como regra geral essa personificação ostenta os atributos da sexualidade e maternidade femininas. Em certos casos, é paradoxalmente apresentada como virgem. Muitas vezes – também paradoxalmente – combina qualidades de generosidade e graça, e também de horror e destruição. Se o amor humano é uma das áreas de sua influencia, o insensato impulso que leva o home a luta também o é.

As imagens que a representam podem ser da natureza da Vênus de Milo, forma ideal da beleza feminina. Ou podem representar distorções de formas e vestes monstruosas. A deusa-mãe, na história da humanidade, não é – e isso está claro – nenhuma forma de figura romântica, mas, ao contrário, alguém em quem os opostos combinam; a doadora da vida é claramente vista também como o ser que pode destruí-la. O paradoxo parece ter sido quase universal.

Um culto universal

Da Escandinávia a Melanésia, deusas, nas quais exatamente esses dois atributos eram encontrados, foram adoradas, temidas e obsequiadas. A universalidade desse fenômeno levou alguns estudiosos a afirmar que o que presenciamos é o reflexo de um fato psicológico que é sempre o mesmo em todos os lugares, embora revestido de forma levemente diferente, nos símbolos.

Mas essa interpretação psicológica também apresenta seus riscos. As vênus paleolíticas, por exemplo, não podem ser facilmente comparáveis a figura medieval da Virgem Maria. A figura da deus-mãe, na Índia, não é a mesma da Grande Mãe das áreas mediterrâneas. A interpretação de Freud e Jung não pode merecer maior crédito do que uma hipótese interessante. 

Entre os mais antigos artefatos do último período paleolítico, existem grotescas figuras de mulheres grávidas, com as ancas e os seios desmesuradamente acentuados. Mas, não há qualquer possibilidade de se afirmar que representam figuras de deusas – isso é só uma hipótese.

A deusa-mãe, na Índia, é uma divindade de muitos aspectos: Parvati, consorte de Siva, Bhaivari, “a terrível”, ou Ambika, “fonte de toda a vida”


Mesmo hoje em dia, o visitante que chegar a uma vila na Índia, pode se surpreender, ao descobrir que os templos dos grandes deuses Siva e Vishnu, são tidos pelo povo como de menor importância que o pequeno santuário da deusa local, ou Grami Devi. Ela pode ter muitos nomes, alguns dos quais encontrados nos textos normais do hinduísmo. Mas ela “é da terra” diretamente responsável pelos campos que circundam a povoação. Pode ser mitologicamente ligada aos consortes dos grandes deuses, Parvati, consorte de Siva, Kali, sua esposa, ou Lakshimi, que fora esposa de Vishnu – mas em todas as circunstâncias, ela é a guardiã da vila, a quem os habitantes se voltam para a solução dos problemas diários. Ela tem seus festivais e suas responsabilidades específicas e é provável que suas funções não tenham mudado de natureza por mais de 5 mil anos.

Na região mediterrânea, que vai desde o Irã, no Leste, até Roma, no Oeste, incluindo Mesopotâmia, Egito e Grécia, o culto a deusa-mãe é tão interligado, que torna qualquer estudo comparativo quase impossível. A identificação da deusa-mãe com a terra fértil é inquestionável: mas, a começar da Mesopotâmia, sua personalidade é tão complicada como a própria humanidade. Por isso ela continua misteriosa, desafiando a inteligência de inúmeros estudiosos.


Inanna, Ishtar, Astarte e Vênus

A figura feminina com atributos de divindade, contudo, é certamente mais do que simples amuleto, para dar sorte. O nome semita para a mais importante deusa-mãe era Inanna, na Suméria, Ishtar, na Babilônia, Astarte, ou Anat, entre os povos de Canaã. Comumente identificada ao planeta Vênus, seu atributo mais típico é o de “rainha do céu” embora seja conhecida também como “namorada dos deuses” e “rainha do mundo”. 

Com o tempo, adquiriu os atributos de outra deusas, de tal forma que, na Mesopotâmia, a palavra “Ishtar” terminou significando simplesmente “deusa”. Acreditava-se que era ela quem produzia a vegetação. Um hino dizia: “Nos céus, eu tomo meu lugar e mando as chuvas; na terra, eu tomo meu lugar e causo a germinação das sementes verdes”. Era a deusa do amor sexual, do casamento e da maternidade. Outro hino dizia: “Transformo homens em mulheres, mulheres em homens; eu sou quem adorna os homens para as mulheres, eu sou quem adorna as mulhres para os homens”. Seu culto era freqüentemente associado a prostituição sagrada.


A sagrada prostituição

O culto da deusa-mãe caminhou para o ocidente através de Chipre e Creta, para a Anatólia e a Grécia. Em sua forma grega pura, o culto a Afrodite na Grécia era cercado de decoro, mas nas fronteiras, em Corinto, era praticada a prostituição sagrada. Mas, quando entrou em contato com a cultura grega, o culto da deusa-mãe encontrou similar proveniente de culturas indo-européias.

No Irã, era adorada Anahita, a deusa que “purifica as sementes do homem e as entranhas e o leite das mulheres”. Era descrita como “uma virgem maravilhosa, poderosa e alta”. Seu culto espalhou-se pelo império persa, e multiplicou-se sob várias formas: Atenas, Afrodite e Cibele, de Anatólia.

Foi Cibele quem, finalmente, se viu adorada no Império romano, como a mãe dos deuses, tendo um templo em seu louvor erguido na colina Palatino, em Roma, no ano 204 a.e.c.

O culto a Cibele continuou, mesmo depois que os romanos o adotaram, de responsabilidade dos primitivos frigias, que usavam cabelos longos e roupas femininas e que nas comemorações a Cibele, realizavam danças orgiásticas que incluíam a auto-estimulação.


Isis egípcia, mãe do faraó

Outra forma popular de adoração a deusa-mãe ainda no Império romano, era o culto de Ísis, a deusa egípcia. Esposa de Osíris, ela era mãe do faraó Hórus. Uma das representações de Ísis a mostrava cuidando do filho, que alguns acreditam ter sido a cena inspiradora das posteriores imagens cristãs de mãe e filho.

Na Anatólia, adorava-se a deusa Ma, cujos sacerdotes eram conhecidos como fanatici (o que quer dizer servos do fanum, ou templo), de onde vem o termo “fanático”.

Mais ao norte havia as deusas tribais celtas e teutônicas. Dentre as últimas, dizia-se que a deusa Freya tivera relações sexuais com todos os membros do panteão e que, como deusa dos mortos, compartilhava com Odin a custódia dos guerreiros tombados em combate. Esta é a mesma forma de ambivalência observada em muitas figuras da deusa-mãe: porque a terra recebe os mortos e possibilita a germinação de homens e animais, as deusas-mãe são também divindades do reino dos mortos.

Representada em estatuetas índias primitivas de deusa da fertilidade, em atitude de quem espera sacrifício, transformada com o tempo: a virgem Maria encarna muitos atributos da “grande mãe” do Mediterrâneo; as estatuetas mostram que a figura feminina com seios desenvolvidos e quadris enormes, foi sempre e em todo o mundo uma preocupação dos homens de locais tão diversos quanto Assíria, Anatólia (6000 a.e.c) e Brasil.


Com o advento do cristianismo nos países do mediterrâneo e Europa, o efeito imediato foi o da perda de prestígio desses cultos e as antigas divindades foram transformadas em demônios. No caso da grande mãe, no entanto, a crença popular transferiu muitos de seus atributos à Virgem Maria. Da mesma forma, divindades locais acabaram sendo confundidas com alguns santos cristãos.

Em Belém, por exemplo, há, ou havia, uma caverna conhecida como “ a gruta do leite”. A lenda diz que a sagrada família uma vez se refugiou ali e que, enquanto a virgem Maria amamentava Jesus, uma gota de seu leite caiu no solo. Por isso acreditava-se que entrar na caverna curava a esterilidade feminina, ou aumentava o leite das mães – humanas ou animais. É claro que ali era um local de adoração de uma forma qualquer de deusa local: a lenda seria apenas uma cristianização de um culto anterior.

A figura divina para a humanidade

A adoração e a reverencia da humanidade pela divina figura da mãe, é um fenômeno religioso muito mais profundo que dogmas, conselhos ou credos. Reflete a constante necessidade da criatura humana de segurança, num mundo inteiramente adverso. Reflete ainda a falta de adequação e os temores do homem. É a pressão entre os dois extremos – o bem e o mal – entre a dádiva da vida e o medo da morte, personificados na deusa que dá e tira, que cria e destrói, mas que nunca é indiferente, como seus consortes, os deuses do céu.

Enquanto o homem mantiver suas raízes na terra, a reverencia continuará sempre, porque a deusa-mãe é quem o defenderá nas esferas mais altas do concerto divino, porque o entende e lhe dá calor, recebe seu afeto e sabe suas falhas, compreende suas necessidades e tem ternura por sua pequenez. Numa expressão simples, a intimidade é completa, porque a deusa-mãe é a intermediária direta da criatura humana com os deuses dos céus: ela sempre terá filhos humanos.

Retirado da revista: Homem, Mito e Magia. Vol. I nº VI Pág. 120 a 123. Editora 3. São Paulo. 1973



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sábado, 1 de dezembro de 2012

Ancestral Local


O artigo a seguir é uma pertinente reflexão sobre o paganismo brasileiro de autoria do amigo Hugo Cezar F. Gondim, o Druida do vento, autor do fantástico blog druidadovento.blogspot.com.br, foi publicado com autorização.

“Pagão Brasileiro” gosta de índio europeu ou estrangeiro. É perceptível a parafernália norte-americana, o calendário Maia que é Asteca, os negócios da China, as brumas de Avalon, a entoação de Mantras e o sal do Mediterrâneo. Eu ainda estou me esforçando para encontrar os deuses ancestrais do Brasil, que desapareceram do repertório de estudos do tal “Pagão Brasileiro”. É notável a falta de sentimento pela Terra que está sob nossos pés neste país, atingindo pagãos, cristãos e sei lá quem. Nós nunca olhamos para o chão, sempre estamos a procura de outro lugar. Li uma frase esses dias que me intrigou: “Se não fosse Pedro Alvares Cabral, eu estaria na Europa”. Quem disse que Pedro Alvares Cabral tem algo com sua encarnação atual? 
Quando as espiritualidades pagãs no Brasil exploram deidades indígenas, elas são quase sempre Incaicas, Maias, Astecas, Norte-Americanas e Canadenses. A figura do Xamã para um “pagão brasileiro” é um velho índio Hopi ou Cree, ou ainda um Siberiano. Pajelança não é paganismo, segundo o “pagão brasileiro”, porque a Umbanda usufrui. Muito além disso, criou-se a consciência que o pajé morreu, inexistente na atualidade, são “benzedeiros”. Cultura indígena é coisa de historiadores e antropólogos, que devem congelar seus mitos em livros. Pensamento dos nossos avós de que “índio bom é índio morto”. 

Se o Pajé com elementos cristãos também não é mais “pagão”, Neo-xamã e xamã urbano são o que então? Mas o Pajé é um pobre coitado que aceitou ser subjugado pela cultura do branco. Não, mas espere um instante! Essa fala é do colonizador, não do nativo. Os povos que aqui viveram nunca foram submissos, eles lutaram e ainda lutam. Quem deu o veredito que eles “aceitaram de bom grado” foram os senhores, filhos de Pedro Alvares Cabral. Houveram grandes e duradouras resistências, como a Mbya-Guaikuru. As mães reclamaram quando jesuítas e colonos tiraram seus filhos de seus braços para o trabalho. Pajé viu tudo, mas brasileiro, parece não ver nada.

Não me venha com essa que você, brasileiro, não tem descendência indígena! Nós todos somos um povo miscigenado, colorido e muito belo. Nós todos temos “um pé na casa grande, na senzala e na aldeia”. Todos esses são nossos ancestrais, seja nossa história sofrida ou não. Já assistiu o filme brasileiro “Desmundo”? Ele conta o período da colonização, com certos detalhes, e demonstra como surgiu a sociedade brasileira: um povo multiétnico.
 
 A justificativa de ter ou não descendência indígena não é o sufiente também, pois a maioria das tradições pagãs prezam a ancestralidade local. Explicando: Ancestralidade Local é o respeito pelos espíritos ancestrais daquele lugar ou região, com gostos, rostos e origens diferentes. No druidismo há três ancestralidades principais: sanguínea, espiritual e local. Ou seja, deve haver respeito e honra para todos os aspectos. Observo muitos rituais “pagãos brasileiros” que fazem sua abertura sem ao menos dizer “Olá, posso entrar?”. Você gostaria que alguém entrasse na sua casa sem avisar? Ou melhor, se você fosse um espírito, que viveu numa dada região e sofreu com a invasão de outros povos, que destruíram sua estrutura cultural, gostaria de ter novamente a mesma experiência no plano espiritual? É momento de exercer respeito com os povos nativos (e isso não é novidade).

Eu gosto de ver “pagão brasileiro” engajado em lutas pela defesa do indígena brasileiro. Acho lindo quando vejo em um ritual oferendas e palavras poéticas aos ancestrais da Terra. Creio ser muito válido chamar meus avós indígenas e curandeiros ancestrais para abençoar os meus passos. Amo as lendas nativas e sua sabedoria e gosto de pesquisar sobre. Se somente esperarmos que historiadores e antropólogos façam catálogos da cultura indígena, ela morrerá. É necessária a prática.


Após ler um livro sobre xamanismo, tenha certeza, você não se tornou um xamã. Lembre-se que na prática que se vê o xamã. Leia, informe-se, saiba sobre a cultura local. Vá a uma Aldeia, desmistifique a sua visão do “índio de livro didático”. Se puder e o xamã tiver essa permissão, deixe-se treinar por ele. Pode ser pouco o que ele tem a oferecer, mas é tudo, é sutil. Um xamã não diz toda a sua sabedoria, pois acredita que ela se desenvolve aos poucos no jovem aprendiz.

Não deseja estudar xamanismo? Você tem toda a liberdade, mas está preso ao respeito pela ancestralidade local. Ame e pratique de corpo e alma com sua parafernália norte-americana, calendário Maia que é Asteca, negócio da China, brumas de Avalon, entoação de Mantras e sal do Mediterrâneo. Entretanto, por favor, faça uma pequena pausa e diga antes de fazer o ritual: “Olá, tenho a permissão?”. Se o problema é não saber o nome, não há problema. Eles, os espíritos ancestrais da Terra, só querem ser reconhecidos por nós. Um simples gesto é uma oferta de coração. Vá aprimorando isso. 


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