quarta-feira, 19 de março de 2014

Bruxas: As Mulheres em Chamas


Durante mais de 300 anos, a mesma Europa que viu nascer a Idade Moderna e presenciou feitos como a conquista do Novo Mundo, a ascensão da burguesia comercial e o fim do domínio feudal, fez das fogueiras um instrumento de repressão e morte para milhares de mulheres condenadas por bruxaria. 
Por Cadu Ladeira e Beth Leite

As pilhas de lenhas e gravetos já estavam acesas e a multidão inquieta, aguardava o início do ritual que conhecia tão bem. Afinal, execuções eram espetáculos imperdíveis, que atraiam a atenção de pessoas vindas de vários cantos. Em meio ao ruído abafado dos comentários sobre os horrores que havia cometido, surgiu enfim a condenada. A turba, que já estava agitada, aproveitou para liberar a tensão reprimida: objetos, palavras de ódio, risos e piadas partiam de todas as direções contra a terrível criatura. Não houve muitas delongas. A sentença foi lida rapidamente, o carrasco, num gesto piedoso, estrangulou a condenada para que não enfrentasse as chamas viva e, em poucos minutos, seu corpo ardia, diante da aclamação selvagem da assistência.

Durante mais de 300 anos, cenas como essa se tornaram corriqueiras nas praças públicas de boa parte da Europa e o caminho da fogueira se transformou no destino de milhares de mulheres. Nuas, montadas em vassouras, aterrorizando cidades, aldeias e castelos, no imaginário popular e religioso da época, as bruxas estavam por toda parte, semeando o pavor. A perversidade feminina campeava solta, a serviço dos mandos do demônio e precisava ser contida qualquer custo.

De 1450 a 1750, poucas pessoas ousariam contradizer essa doutrina, repetida em tom de ameaça nos púlpitos dos pregadores católicos, assim como nos sermões protestantes depois da Reforma religiosa de Martinho Lutero no século XVI. Bruxaria era uma calamidade tão real quanto tempestades ou pestes, e intimamente ligada à natureza feminina. Com exceção de Portugal e Espanha, onde os principais perseguidos eram cristãos novos e judeus, em quase toda a Europa a porcentagem de mulheres excedeu 75% dos casos.
Em algumas localidades, como o condado de Namur (atual Bélgica), elas responderam por 90% das acusações.

Estima-se que 100 000 processos foram instalados pelo continente afora e pelo menos 60 000 vidas se perderam em meio às chamas.

Foi em plena Idade Moderna - a mesma que presenciou a descoberta de um novo mundo com as grandes navegações, a ascensão da burguesia comercial, o fim do domínio feudal e a formação dos primeiros Estados nacionais europeus - que o temor às forças do mal deixou o campo da crendice popular para se tornar alvo de uma perseguição sistemática de tribunais leigos, religiosos e da Inquisição - sob controle papal.

Não que as fogueiras tenham sido estranhas à sociedade medieval. A Idade Média também presenciou exibições do poder purificador das chamas, a mais notável delas, sem dúvida, aquela que consumiu a vida da jovem Joana d'Arc em 30 de maio de 1431, na cidade de Rouen, então sob domínio inglês. Heroína nacional, Joana ficou famosa depois que conduziu o exército francês à vitória sobre os ingleses em Orléans e deu início à revanche de seu país na Guerra dos Cem Anos (1337-1453), até aquele momento vencida fragorosamente pelos britânicos. Em 1430, quando caiu prisioneira nas mãos do duque de Borgonha, aliado ao rei inglês Henrique V, seus inimigos aproveitaram a fama das visões que ela costumava ter desde pequena para levá-la à fogueira, mesmo sabendo de sua extrema devoção religiosa. Nesse caso, porém, o cunho político da condenação era tão óbvio, que antes do final daquele século ela seria reabilitada e em 1920 finalmente transformada em santa.

Para bruxas menos famosas, no entanto, a chegada da Idade Moderna trouxe uma mudança radical na atitude da igreja e dos tribunais em relação ao universo da superstição, do paganismo e do mito com o qual, havia mais de 1500 anos, a Europa convivia. Na mitologia romana, Diana, deusa dos bosques e dos animais, já costumava guiar amazonas noturnas em cavalgadas celestes. 

Entre as crenças imemoriais germânicas, acreditava-se que figuras ameaçadoras, conhecidas como streghe, se reuniam na floresta em torno de caldeirões para realizar seus rituais. Depois se volatilizavam e invadiam as casas para chupar a vitalidade das crianças. Mas em meio à insegurança da aurora da modernidade, um tempo marcado por mudanças e desgraças constantes como fomes, pestes, guerras e conflitos religiosos, boa parte dessa tradição fantasiosa do passado acabou associada à certeza de que o demônio e suas seguidoras estavam determinados a dominar o mundo. 

Feitiços e mulheres voadoras tornaram-se, da noite para o dia parte te de uma grande conspiração demoníaca. Encantos e ungüentos - chamados na época de maléfica - que antes serviam para ajudar as pessoas se transformavam em passaporte certo para a morte.

Não era preciso muito para provar que a ação infernal estava em andamento. Além das tradicionais acusações de possessões diabólicas, crises políticas e sociais, calamidades naturais ou qualquer outro acontecimento anormal eram capazes de detonar a mortandade. Em Trier, na França, uma feroz epidemia de processos contra as bruxas ocorreu entre 1580 e 1599, quando duas grandes colheitas foram dizimadas por alterações climáticas. 

No principado alemão de Ellwagen, em 1611, em Genebra em 1530,1545,1571 e 1615 e em Milão em 1630, para citar uns poucos exemplos, centenas foram condenadas à morte após um surto de peste. No século XVII, em Cambrai, também na Franca a instalação de novas indústrias no campo gerou uma onda de ansiedade entre os camponeses que logo desembocou numa grande caça.

Algumas alegações contra a bruxaria eram tão descabidas, que só mesmo o clima de paranóia coletiva explicava a relação: em 1590, depois que uma tormenta no Mar do Norte destruiu um dos navios da comitiva de Jaime VI da Escócia e de sua noiva, Ana da Dinamarca, os dois países iniciaram uma cruel perseguição a feiticeiras. As grandes caçadas vinham assim: como tempestades de verão, chegavam avassaladoras e de surpresa, mas tinham curta duração. Quase sempre, após um período de frenética perseguição, as comunidades se aquietavam durante os anos seguintes. Era como se tivessem se livrado de um cancro.

Escritos da época registram o quase inacreditável. Na diocese italiana de Como, 1000 execuções em um ano. Em Toulouse, na França, 400 cremações são contadas em um único dia. No arcebispado francês de Trier, em 1585, 306 bruxas delataram cerca de 1500 cúmplices. Embora a maior parte das acusadas tenha escapado à morte, isso não impediu que duas aldeias da região ficassem à beira do extermínio: sobraram apenas duas mulheres em cada uma delas.O mais impressionante é que a maior parte dessas mulheres, e mesmo dos homens, condenadas chegaram às fogueiras por confissão própria, graças à tortura. 

Durante esses quase três séculos de morte, conseguir uma confissão era apenas questão de tempo. Quando acontecia de o acusado resistir muito durante uma sessão de maus tratos, isso só aumentava a convicção de culpa dos interrogadores: afinal, tamanha resistência só podia ter por trás o auxílio de forças que não eram apenas naturais. Hoje, sabe-se que o uso indiscriminado desse instrumento macabro se confunde com o próprio mapeamento da caça às bruxas pela Europa.

O predomínio do temido Tribunal de lnquisição, por exemplo, serviu para atenuar os casos de condenação à morte de bruxas nos países da Península Ibérica e na Itália. Embora tenha ficado famoso na Idade Média pela prática da tortura, na época em que começou a grande repressão européia, a partir do século XV, os inquisidores já haviam elaborado uma extensa reforma jurídica que garantia não só assistência legal aos acusados como restringia a ação dos torturados a casos muito especiais. Na Inglaterra, onde suspeitos de bruxaria só podiam ser submetidos à tortura com autorização dos conselhos superiores de Justiça, a caça às bruxas também teve pouca expressão. Já na Alemanha, dividida em dezenas de ducados e principados independentes política e judicialmente, a caça às bruxas ganhou proporções assustadoras. Nada menos de 50% dos processos contra elas aconteceram em terras germânicas, e a maior parte resultou em morte.

Às vezes, a descoberta de uma fraude conseguia evitar que a perseguição chegasse a um final dramático. Em 1633, o jovem inglês Edmund Robinson denunciou uma mulher que o teria levado a um sabá de bruxas, onde estavam reunidas cerca de sessenta feiticeiras. O menino deu o nome de dezessete delas, todas imediatamente presas e condenadas. Algumas dúvidas sobre o depoimento, no entanto, levaram o bispo de Chester a interrogar Edmund e ele acabou admitindo ter forjado a história por sugestão do pai, que havia indicado todos os nomes "por inveja, vingança e desejo de tirar vantagem", descobriram os juízes. Na Escócia, o ensaio de uma grande repressão nacional em 1661 entrou em colapso quando os eméritos caçadores de bruxas John Kincaid e John Dick foram flagrados dando picadas em mulheres acusadas de bruxaria: nos tribunais, essas pequenas marcas eram a prova de que elas haviam feito pacto com o diabo.

Foram poucas, porém, as caças detidas por evidência de fraudes. Normalmente, quando uma perseguição se instalava, nada conseguia detê-la e o pânico tomava conta da população. A princípio, todos estavam sob suspeita e a melhor defesa era o ataque. Uma vez iniciada a caça, delações não paravam mais. Assustadas com a perseguição, multas pessoas logo se punham a entregar as vizinhas na tentativa de livrar a própria pele de potenciais acusações. Cada possível bruxa levada a julgamento, por sua vez, não tardava a incriminar mais uma lista de acusadas num efeito dominó que levava grandes levas de pessoas diante dos juízes.

Cenas e relatos como esses não só foram realidade como contavam com uma robusta fundamentação teórica de uma obra sinistra. Publicado em 1486, o livro Malleus Maleficarum, escrito pelos inquisidores papais alemães Heinrich Kramer e James Sprenger, foi um eficaz instrumento nos tribunais para consolidar a crença de que uma grande conspiração arquitetada por Satã e suas seguidoras, as bruxas, tomava conta do mundo. Até o final do século XV, o manual já era um best seller, recordista absoluto entre qualquer livro anterior ou posterior sobre demonologia, com mais de uma dúzia de edições.

Na detalhada obra, que explicava desde os feitiços mais comumente praticados até como localizar a presença das malignas criaturas no seio da sociedade, Kramer e Sprenger não pouparam esforços para mostrar que a mesma mulher que provocou a expulsão do homem do paraíso ainda era uma ameaça presente. O velho temor católico de monges e padres celibatários estava mais forte do que nunca. "A perfídia é mais encontrada nas pessoas do sexo frágil do que nos homens" garantiam os dois. Bruxas eram o mal total: renunciavam ao batismo, dedicavam seus corpos e almas ao demônio e, suprema lascívia, costumavam manter relações sexuais com ele.

Principalmente durante os sabás, reuniões em que as forças do mal se reuniam para banquetear-se com criancinhas não batizadas e que sempre terminavam em fabulosas orgias. Testemunhos da época davam notícia de sabás reunindo até 1000 bruxas.

Para provar a propensão natural da mulher à maldade não faltavam argumentos aos autores do Malleus. A começar por "uma falha na formação da primeira mulher, por ser ela criada a partir de uma costela recurva, ou seja, uma costela no peito, cuja curvatura é, por assim dizer contrária à retidão do homem. A própria etimologia da palavra feminina confirmava essa fraqueza original: segundo eles, femina, em latim, reunia em sua formação as palavras fide e minus, o que quer dizer menos fé.

Defender idéias assim não era exclusividade dos dois inquisidores alemães. A aversão à mulher como ser mais fraco e, portanto, mais propenso a sucumbir à tentação diabólica era moeda corrente em todas as regiões da Europa - dos pequenos vilarejos camponeses aos grandes centros urbanos. Nos sermões de padres por toda a Europa, proliferava a concepção de que a bruxaria estava ligada à cobiça carnal insaciável do "sexo frágil", que não conhece limites para satisfazer seus prazeres. Com seu "furor uterino", para o homem a mulher era uma armadilha fatal, que podia levá-lo à destruição, impedindo-o de seguir sua vida tranqüilamente e de estar em paz com sua espiritualidade.

O clima de desconfiança em relação às mulheres teve também predileções profissionais. Quando não era o caso de grandes perseguições orquestradas para expurgar males como a peste, certos ofícios tipicamente femininos tinham precedência na lista de denúncias. Curandeiras, vitais para uma sociedade onde a medicina ainda era uma ciência incipiente, tornavam-se herejes e apóstatas da noite para o dia. Cozinheiras também viviam sob constante desconfiança, assim como as parteiras. Acusadas freqüentemente de batizar os recém-nascidos em nome do diabo ou de matá-los para usar seus corpos em rituais, elas foram vítimas de anos de suspeita acumulada, numa época em que a taxa de mortalidade infantil era altíssima.

Em 1587, a parteira alemã Walpurga Hausmannin, foi processada por ter causado a morte de quarenta crianças, algumas com até 12 anos. Entre os métodos que ela empregava, estavam o estrangulamento, esmagamento de cérebro da criança no parto e aplicação de "um ungüento do diabo sobre a placenta", de modo que a mãe e a criança morressem juntas. Seu destino foi a fogueira. O mesmo de uma parteira húngara, que em 1728 conseguiu uma marca duvidosa, mas perfeitamente factível para seus contemporâneos: ela morreu queimada por ter batizado nada menos do que 2000 crianças em nome do demônio.

Para quem se acostumou a relacionar a figura das bruxas a personagens pitorescas de contos da carochinha - como a madrasta de Branca de Neve ou a fada malvada de Cinderela -, às vezes fica difícil acreditar em histórias assim. Mas elas existiram e deixaram em seu rastro uma cruel realidade da morte de milhares de mulheres inocentes em fogueiras piamente acesas para limpar o mundo.


ELAS POR ELES



A identidade com o pecado original, principalmente na história do cristianismo, foi um fardo pesado para a mulher até o século XVII. Desde os primeiros eremitas cristãos, nos desertos da Síria é do Egito, a busca da austeridade religiosa pelo isolamento ascético tornou-se não só uma regra obrigatória para o aprimoramento espiritual, mas também consagrou o papel da mulher como a principal tentação mundana, capaz de afastar o homem do caminho da purificação. Uma norma que, na Europa, começaria a se consagrar a partir do século VI, quando São Bento de Nursia fundou o mosteiro de Monte Cassino, na Itália, e deu início ao movimento monástico beneditino, que marcaria profundamente a atitude religiosa do continente.

"Toda malícia é leve, comparada com a malícia de uma mulher." (Eclesiástico 25:26)
"Tu deverias usar sempre o luto, estar coberta de andrajos e mergulhada na penitência, a fim de compensar a culpa de ter trazido a perdição ao gênero humano... Mulher, tu és a porta do Diabo." (Quinto Tertuliano, escritor cristão, século III)
"Dentre as incontáveis armadilhas que o nosso inimigo ardiloso armou através de todas as colinas e planícies do mundo, a pior é aquela que quase ninguém pode evitar: é a mulher, funesta cepa de desgraça, muda de todos os vícios, que engendrou no mundo inteiro os mais numerosos escândalos." (Marborde, monge de Angers, século Xl)
"Toda mulher se regozija de pensar no pecado e de vivê-lo. "(Bernard de Morlas, monge da Abadia de Cluny, século XII)
"A mulher é um verdadeiro diabo, uma inimiga da paz uma fonte de impaciência, uma ocasião de disputa das quais o homem deve manter-se afastado se quer gozar a tranqüilidade" (Francisco Petrarca, poeta italiano, século XIV)
"Que se leiam os livros de todos aqueles que escreveram sobre feiticeiros e encontrar-se-ão cinqüenta mulheres feiticeiras, ou então demoníacas, para um homem." (Jean Bodin, jurista, sociólogo e historiador, século XVI)
"Pois a Natureza pretende fazer sempre sua obra perfeita e acabada: mas se a matéria não é própria para isso, ela faz o mais próximo do perfeito que pode. Então, se a matéria para isso não é bastante própria e conveniente para formar o filho, faz com ela uma fêmea, que é um macho mutilado e imperfeito." (Laurent Joubert, conselheiro e médico inglês, século XVII).

FONTE: Contando História - http://www.amazon.com.br/~armando

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segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

As Bruxas da Ilha de Santa Catarina



Este ano de 1963 verificaram-se três casos de morte de crianças, por artes das bruxas, na cidade de Florianópolis e no interior da ilha de Santa Catarina. A conselho de benzedeiras e milagreiras, os pais das pequeninas vítimas prepararam as armadilhas tradicionais, mas somente uma das bruxas foi apanhada.

Quem são essas estranhas criaturas?

Crédito da imagem: Viviane Torres Curth. Obtido via web, clique na imagem para acessar o blog da artista

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Os entendidos dizem que, se um casal tem seguidamente sete filhas, a mais velha ou a mais moça delas está predestinada a transformar-se em bruxa, em especial se as meninas são feias, esqueléticas, de nariz adunco e de hábitos mais ou menos estranhos. Há um modo de evitá-lo. À medida que as meninas vão nascendo os pais fazem com que as irmãs mais velhas batizem as mais môças, dando-lhes o nome de Benta; e, após o batismo, despem as crianças e administram-lhes uma colherinha de vinho virgem, vestindo-as em seguida com a mesma roupa, mas pelo avesso, até o galo preto cantar. Parece, porém, que tal cautela tem sido pouco observada – ou não haveria tantas bruxas a assombrar a ilha.

As bruxas costumam aparecer, com mais freqüência, na Ponta da Feiticeira, no distrito dos Ingleses, onde em certas noites se pode ver um facho de fogo errante a passar sobre as casas do lugar; mas também foram localizados em Santo Antonio de Lisboa, Pântano do Sul, Ponte das Canas, Lagoa da Conceição, Rio Tavares, Morro das Pedras, Ribeirão da Ilha e Barra do Sul.

Em meio a gargalhadas estridentes e sinistras as bruxas divertem-se nos pastos, ora dando nós nos rabos e crinas dos cavalos (nós que seriam indesatáveis), ora chupando-lhes o sangue, ora obrigando-os a galopar as tontas; nas encruzilhadas dos caminhos às vezes transformadas em mulas oferecendo montaria aos viajantes incautos, ou na forma de galinhas chocas; na praia soltam as canoas dos pescadores, enleiam-lhes o espinhel, sujam-lhes as velas; em casa aboletam-se no encosto dos bancos e cadeiras pondo os pés sujos de lama e de fezes no assento para sujar as roupas das pessoas de família; e em geral atiram pedras, torrões de barro (barro de cemitério) junta de cobra e matérias fecais sobre coisas, animais e pessoas.

Quando há figueiras e carvalhos na redondeza, reúnem-se em concílio sobre as suas ramagens para treinar as novas bruxas ou para combinar as travessuras da noite, mas o seu ponto preferido de reunião às quintas e sextas-feiras a horas mortas, são casas abandonadas ou mau assombradas.


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Nesses dias as bruxas despem-se, escondem as roupas sob folhas de mato em touças de bananeira ou sob os paneiros das canoas dos pescadores, esfregam no corpo unto virgem e pronunciam as palavras mágicas:

"Por cima do silvado

e por baixo do telhado"
a que algumas vezes acrescentam:
"formada em bicho mandado."

Estão aptas então a toda sorte de estripulias. Locomovem-se em lanchas baleeiras, canoas bordadas e de borda lisa, lombo de cavalo, carro de boi, vassoura, - e nem sempre limitam as suas andanças à ilha, largando-se pelo mundo a visitar países em todos os continentes.
O encanto dura algumas horas a partir da Ave Maria marcadas pelos sucessivos cantos de aviso do galo branco, do galo amarelo e do galo preto. Se o canto do galo preto as surpreender ainda a cumprir o fado, as bruxas não poderão voltar novamente a forma humana.


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Os habitantes da ilha conhecem um esconjuro contra as bruxas,

"Bruxa

Tatarabruxa

Aguilhão nos teus pés

e antolhos nos teus olhos

Tu não me entras aqui nesta casa

nem nesta comarca toda

Em nome de Deus e da Virgem Maria,

Amém"

mas alguns deles, não tão crédulos no simples poder das palavras, quando as pressentem se valem de vários contra para mantê-las à distancia: desenham a cruz do sino Saimão na porta da casa; despem a roupa e vestem-na pelo avesso; põem uma faca entre os dentes com o corte para fora... Acredita-se que o sino Saimão prenda a bruxa no local.
Uma defesa permanente é o breve em que se reúnem um pedacinho de madeira com a cruz do sino Saimão, um pedacinho de esporão de galo preto, um pouco de pó da gema de um ovo da Sexta-Feira Santa, um pedaço da unha de gato preto e três grãos de mostarda.


4
A aparência das bruxas apavora e terrifica.

Pessoas que com elas tiveram contato dizem que são feias como os sete pecados, que os seus olhos chispam fogo e que nas mãos engelhadas empunham fachos de luz de cores diversas, que sacodem no ar numa chuva de faíscas.

Uma bruxa que costumava ficar ao leme de uma lancha que toda semana furtava na praia tinha o corpo coberto de escamas negras e as unhas das mãos semelhavam pontas de lança, os cabelos compridos caiam pela pôpa sobre o mar deixando no rastro um fogo de ardênia, nos olhos chamejavam dois feixes de luz e os pés eram como patas de mula...

Crédito da imagem: Obtido via web: Guia Floripa, clique para acessar.

5
A bruxa adora chupar o sangue das criancinhas.

Os pais se precaveem contra essa possibilidade pondo ao pescoço da criança um rosário de nove dentes de alho e queimando a palha das liláceas no interior da casa, para afugentar as bruxas.

Não há dúvida de que se trata de bruxedo quando uma criança de menos de um ano, ao adoecer apresenta o cabelo acarneirado, o corpo coberto de manchas roxas e mesmo sangrando em alguns pontos, e se mantém de mãos cruzadas sobre o peito (as vezes também os pés cruzados) desatando num choro que mete dó ao anoitecer, principalmente as sextas-feiras. Em geral quando a misteriosa moléstia chega a esse ponto os pais já recorreram ao médico da localidade sem que os seus remédios tenham surtido efeito visível. Vendo a criança definhar os pais chamam alguma benzedeira ou milagreira conhecida na redondeza; Esta ao chegar à casa confirma, se ficar confusa ou se se puser a bocejar incontidamente, que alguma bruxa está exercendo a sua ação maléfica sobre a criança.

Para penetrar em casa e chupar o sangue dos pequeninos as bruxas afinam e alongam o corpo de maneira a passar pelo buraco da fechadura.

A benzedeira ou milagreira persigna-se e aconselha para obter a cura do doente, ou tratamentos mágicos se o caso parece de menor importância, ou alguma das armadilhas tradicionais poderosas para desencorajar e desmascarar as bruxas, nos casos mais graves.


Tratamentos:
1)        Faz-se um cozimento com cisco de três marés com mo qual se banha a criança. Após o banho dão-se-lhe três colherinhas do cozimento para beber. O tratamento deve continuar durante nove sextas-feiras. (Em certas épocas o mar avançando pela praia, deixa em três dias sucessivos, camadas de detritos, cisco, a pequena distancia uma da outra. Um pouco do detrito de cada qual dessas camadas forma o cisco das três marés, ingrediente usado para este tratamento mágico).

2)        Uma variante do anterior: Faz um cozimento com ciscos das encruzilhadas e com ele se dá um banho na criança, fazendo a beber em seguida, três colherinhas do líquido. Os entendidos dizem que o remédio se mistura com o sangue da vítima, o que enjoa as bruxas, que dela desistem.

3)        Apanha-se uma pedra numa coivara e faz-se uma fogueira em torno dela até que a pedra fique em brasa; atira-se a pedra numa vasilha com água virgem da fonte, quando a água se torna tépida retira-se a pedra e dá-se um banho na criança, administrando-lhe em seguida três colherinhas da água. A pedra depois de usada deve ser reposta no mesmo local. Durante nove sextas-feiras deve se repetir o tratamento utilizando de cada vez uma pedra diferente.


Armadilhas:
1)        O pai toma a primeira camisa usada pela criança, criva-a de agulhas, coloca-a dentro de um pilão de chumbar café e com a mão de pilão soca-a até que as agulhas penetrem na madeira do pilão, ou seja, no corpo da bruxa, que não podendo resistir a dor, vai procurar a família para confessar-se culpada e perde o encanto.

2)        Põe-se uma ceroula do pai, disposta em cruz, sobre a criança; Reza-se o creio-em-deus-padre de trás para diante; Sobre a mesa ou numa cadeira coloca-se um pires com água benta conseguida na igreja, ou comum apanhada na fonte numa sexta-feira antes do nascer do sol, dentro do pires um bocado de cera virgem e a chave da porta principal; Os pais devem fica acordados e atentos no escuro, quando a criança chorar (sinal de que a bruxa está a chupar-lhe o sangue), os pais devem, com a cera virgem, tapar o buraco da fechadura; Basta aguardar então o desencanto da bruxa, que se dará exatamente quando o galo preto cantar.

3)        Dentro de um baú de folha-de-flandres acende-se uma vela benta; reza-se o creio-em-deus-padre de trás para diante sobre a chama da vela e abaixa-se a tampa do baú de tal modo que o ar possa nele penetrar mantendo viva a chama. Com a casa as escuras todas as chaves devem ser retiradas das portas e colocadas em cima do baú; Quando a criança chorar os pais apanham as chaves de cima do baú, introduzem-nas nos buracos das fechaduras e acendem as luzes; Presa a bruxa, coagida pela oração e pela vela benta, tenta fechar o baú, e ao sentar-se em cima dele, perde o encanto.

4)        Uma variante da anterior: Num meio alqueire de medir farinha, junto a cama da criança, acende-se uma vela benta sobre a qual se reza o creio-em-deus-padre de trás para diante; A casa deve ficar as escuras com todas as chaves sobre o meio alqueire; Quando a criança chorar os pais apanham as chaves, introduzem-nas nas fechaduras e acendem as luzes; A bruxa, sentindo-se presa, procurará sentar-se sobre o meio alqueire, com o que se desencantará.

5)        Põe-se uma tesoura, aberta em cruz, numa mesa próxima ao berço da criança; As chaves das portas devem estar num pires com água benta; A casa estará as escuras; Quando a criança chorar os pais introduzem as chaves nas fechaduras e acendem as luzes; A bruxa, que tem horror a tesouras abertas, perde o encanto.

6)        Cozem-se folhas de Guiné, cordão-de-frade, limoeiro e arruda, nove dentes de alho e um pouco de mostarda; Com esse cozimento dá-se um banho na criança; Todos os irmãos e todas as pessoas da família residentes na casa devem lavar os pés na mesma água até chegar a vez do pai, que reza o creio-em-deus-padre de trás para diante sobre a vasilha; Fecha-se então a porta deixando-se a chave em falso, quase a cair pela parte de dentro; Põe-se a vasilha com água do cozimento abaixo da fechadura; Para penetrar na casa a bruxa deverá empurrar a chave, que cairá dentro da vasilha fazendo com que ela se desencante. Esta armadilha deverá ser preparada às sextas-feiras à hora da ave-maria.

Se estas armadilhas mais simples não dão resultado – há bruxas mais sabidas e mais experientes do que as outras, que não se deixam apanhar com facilidade – preparam-se outras mais fortes e mais terríveis, não apenas para desmascarar, mas também para revidar de algum modo, os poderes maléficos das bruxas, como as duas seguintes:

7)        Num prato com água perto da cama da criança, põem-se nove dentes de alho numa sexta-feira a hora da ave-maria, rezando-se o creio-em-deus-padre de trás pra diante; Uma faca bem afiada deve estar sob a cama do doente; Retiram-se todas as chaves das portas para que a bruxa possa entrar; Quando a criança chorar, dá-se-lhe uma colherinha da água que está no prato e corta-se com a faca um pedacinho da ponta de uma fita vermelha comprida, que surgirá descendo da cumeeira da casa em direção a boca da criança; Guarda-se o pedaço da fita sem nada dizer a ninguém. Uma estória corrente, relativa a esta armadilha, conta que o pedacinho da fita vermelha se transformou no bolso do pai, numa orelha humana – a orelha da bruxa, que desse modo pôde ser identificada.

8)        A hora da ave-maria numa sexta-feira, põe-se numa mesa próxima a cama da criança, um copo de cachaça sobre uma carta (usada) de baralho com um cigarro de palha de fumo de corda forte e uma faca afiada e pontiaguda, faz-se uma cruz sobre a mesa, reza-se o creio-em-deus-padre de trás pra diante; Quando a criança chorar retira-se o copo de cima da carta de baralho, apanha-se a faca e com ela se golpeia ou decepa qualquer parte de um bicho que aparecerá nas bordas do copo ou em cima do cigarro ou da carta de baralho. Uma estória referente a esta armadilha conta que o pai, tendo cortado a pata de uma rã que se equilibrava na borda do copo, viu-a transformada em dedos humanos – os dedos da bruxa que chupava o sangue do seu filho.

Nesses dois últimos tipos de armadilha, no dia seguinte corre a notícia de que uma mulher da vizinhança foi acidentada; O pai que deve manter o maior sigilo terá de procurá-la para que a armadilha dê o esperado resultado – a transformação mágica, em partes do corpo, das coisas que conseguiu arrancar à bruxa quando esta cumpria o seu triste destino.

Sempre que preparam uma armadilha os pais devem estar prevenidos com um rabo de tatu conservado no fumeiro da cozinha, para quando a bruxa reassumir a forma humana, aplicar-lhe uma boa surra até fazer sangue; Para reforçar a quebra do encanto as feridas da bruxa devem ser lavadas em salmoura – sal, pimenta e alho ou sal, cachaça e vinagre.


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As bruxas, poder maléfico solto sobre o mundo, são a maldade pela maldade sem endereço nem predileções, não há possibilidade de alguém as induzir a perseguir esta ou aquela pessoa e nem mesmo os parentes e os amigos estão livres de suas travessuras ou das suas crueldades.

Para a população em geral, são elas as responsáveis diretas, tanto por boa parte dos acontecimentos sem explicação plausível como por apreciável percentagem da mortalidade infantil (130,2 por mil nascidos vivos em 1957) registrada na ilha de santa Catarina.
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